Como a arquitetura e o urbanismo podem voltar a contribuir no debate e na produção de Habitação de Interesse Social (HIS)? Essa foi uma das principais perguntas que orientou o processo de elaboração do Caderno de Diretrizes de Habitação de Interesse Social no Jardim Lapena, desenvolvido pela Fundação Tide Setubal e pelo BlendLab para a região da Zona Leste de São Paulo. Esse caderno reuniu um conjunto de diretrizes sobre habitação, modelo de gestão, implantação e integração com o meio urbano e orientou as propostas para uma Chamada de Projetos + Lapena Habitar realizada no fim de 2022 .
A Chamada reuniu 5 equipes de arquitetura com o objetivo de responder aos temas identificados pelo Caderno de Diretrizes dentro do Programa +Lapena Habitar sobre os desafios das habitações periféricas como modos de morar, composição familiar, diferentes contextos urbanos de implantação, métodos construtivos, processo de pré e pós ocupação e questões do morar-e-trabalhar. Além desses pontos, o Programa tem como premissas três estratégias: produzir HIS com capital privado, em modelo de aluguel e com gestão civil. Se por um lado o Brasil tem uma vasta e rica história de HIS, tal herança não apresenta um repertório que possa responder a esses novos desafios. Fundamentalmente, o Programa +Lapena Habitar busca identificar, compreender e responder aos novos desafios da Habitação de Interesse Social no Brasil.
O edital da Chamada pedia propostas para três locais: 1) Um bloco de apartamentos no Jardim Lapena; 2) Uma proposta de atravessamento sobre a linha do trem que separa o Jardim Lapena e o centro de São Miguel Paulista; 3) Um prédio em São Miguel Paulista que, por sua posição estratégica junto à única passarela de pedestres que atravessa a linha férrea, poderia funcionar como um ativador da rua, oferecendo segurança para os moradores no seu dia a dia.
As propostas apresentadas aqui foram desenvolvidas pelos escritórios Terra e Tuma e Estúdio Síntese. Entre os principais pontos que chamaram a atenção do Comitê Consultivo está a rica variação da tipologia da unidade habitacional. Esse era um dos desafios apontados no Caderno de Diretrizes de Habitação de Interesse Social no Jardim Lapena, que estimulava que os projetos contemplassem a diversidade de arranjos familiares e a presença de grupos de diversos estratos sociais no mesmo empreendimento. Outro aspecto importante que foi estimulado na unidades era indicado na diretriz “Prever a possibilidade de atividades econômicas nas unidades e/ou no(s) empreendimento(s)” que refletiram nas estratégias de configuração tipológica de unidades com dois acessos distintos, e circulações externas distintas para uso íntimo e doméstico e para comércio nas unidades. A diretriz “ Reduzir custos de moradia e manutenção” é observada no projeto na escolha dos materiais (blocos de concreto aparente, elementos pré-moldados, instalações aparentes), estratégias de ventilação e iluminação que diminuem custos tanto no processo de construção quanto no pós ocupação. Outra alternativa utilizada, provocada pelo edital, foi a otimização do uso do banheiro nas unidades habitacionais, através da separação dos componentes (chuveiro, bacia sanitária e lavatório).
Para a proposta de atravessamento, os escritórios desenvolveram um sistema de perfis leves modular replicável em diversos pontos ao longo da linha férrea, ampliando as possibilidades de acesso à comunidade. Respondendo assim a um dos desafios feito aos escritórios, que era o estímulo à circulação de pedestres nesse trecho, bem como ampliar as possibilidades de uso do espaço aéreo da linha férrea.
Da equipe:
Atravessamento
O dinâmico centro de São Miguel se encontra fisicamente muito próximo do Jardim Lapena, no entanto, a linha de trem impede que o fluxo entre Lapena e São Miguel seja mais conectado. O acesso de veículos se restringe à passagem sob a Av. Jacu-Pêssego à sudoeste do bairro. A travessia de pedestres pode ser realizada em mais 2 pontos: à sudeste através da Estação São Miguel Paulista, a qual funciona entre às 4h-24h, e ao sul, pela passarela que conecta a Rua Rafael Zimbardi à Rua Angelina Lapena Parente, esta última apresenta alguns relatos de falta de segurança e acúmulo de lixo. Para ampliar o diálogo entre o Jardim Lapena e o centro de São Miguel Paulista, a presente proposta sugere o incremento da integração dos bairros através de novas costuras entre as duas margens, para que se conforme um tecido urbano contínuo. As múltiplas pontes viabilizam novos trajetos e encurtam percursos.
As novas travessias visam: 1. Reforçar a rede de caminhabilidade proposta para o Jardim Lapena e expandir sua influência, conectando-as com importantes eixos existentes; 2. Facilitar o acesso aos principais equipamentos institucionais do Jardim Lapena; 3. Potencializar os comércios e serviços do Jardim Lapena; 4. Criar pontos de interesse nos finais das ruas sem saída, trazendo mais movimento e segurança nas travessias, acoplando programas diversos que funcionem em horários estendidos; 5. Encurtar os percursos e criar uma variedade de atravessamentos gerando diversas novas situações urbanas.
O sistema construtivo foi concebido para gerar o menor impacto ambiental possível. A especificação de materiais leves, duráveis e de baixa produção de resíduos permite uma obra seca e rápida. Escolhemos o sistema construtivo em madeira com o objetivo de contratar e qualificar a mão de obra local para trabalhar com um material tradicional da construção civil que possui um estigma associado às construções de palafitas, temporárias e precárias. Propomos a utilização da madeira como material industrial, pré-fabricado, durável e tecnológico.
A opção pela estrutura de madeira (laminada colada - MLC) modulada a cada 2,50m, com perfis leves e de origem renovável, reduz o peso sobre as fundações e garante o controle e agilidade do processo construtivo. Os fechamentos são feitos com sistema autoportante de MDF, a cobertura em telha termoacústica e os pisos em painel wall.
Os módulos podem se associar verticalmente até atingirem a altura necessária para atravessar a linha do trem. Horizontalmente os módulos podem se juntar para abrigar programas que funcionem como uma extensão do Galpão ZL: espaços para cursos, pequenas lojas, lanchonetes, áreas de lazer, bicicletários, guaritas e mirantes.
Habitações: Acreditamos que, para construir a cidade, é fundamental que o desenho dos espaços vazios se configure como lugares de encontros e experiências, que possam mediar o território, a arquitetura, a infraestrutura e a paisagem. Não apenas um térreo aberto ou uma cobertura de lazer, mas um local que permita que os espaços públicos da cidade se comuniquem de forma natural, criando um potencial indutor de urbanidade e incentivo à apropriação popular. Propomos a construção de novos elementos urbanos que atuem não somente como espaços destinados à habitação, mas que abriguem múltiplas possibilidades de uso, configurando-se como uma referência no território capaz de qualificar o entorno e atrair os moradores da região do Jardim Lapena e São Miguel Paulista.
O projeto foi elaborado visando a economia, a baixa manutenção e uma modulação que viabiliza dois sistemas construtivos: térreo com pilares e vigas em concreto armado e os demais pavimentos em alvenaria estrutural com laje painel treliçada ou toda a estrutura em concreto e laje painel com alvenarias de vedação. Em ambos edifícios, as circulações abertas, ventiladas e bem iluminadas são facilmente vistas da rua e se tornam pontos de encontro para aprender, trocar experiências, socializar e gerar renda. Os condomínios prevêem a instalação futura de elevadores e áreas comuns acessíveis.
A proposta busca aproveitar ao máximo as estratégias passivas de conforto e eficiência energética, buscando harmonia entre o ambiente natural e o espaço construído, levando em consideração as particularidades de cada inserção. Adotamos a iluminação natural em todos os ambientes e a ventilação natural e cruzada, sempre que possível, a fim de reduzir as cargas térmicas internas. A cobertura permite que as águas pluviais sejam coletadas e armazenadas em cisternas, garantindo o abastecimento das áreas comuns. O gabarito dos edifícios prevêem uma conexão bastante franca entre as unidades habitacionais e a rua, entre os espaços de trabalho e seus clientes, entre a área de uso flexível e a comunidade.
Edifício Jardim Lapena
O Edifício Lapena está localizado na Rua Dr. Almiro dos Reis, uma das principais vias do Jardim Lapena. A escolha do lote se deu a partir do potencial de construir relações entre o novo edifício e a proposta apresentada para a área da Praça do Mutirão. O edifício foi organizado em 3 volumes articulados por duas circulações independentes. A que se encontra próximo à rua conecta as áreas comerciais, espaços de trabalho dos apartamentos e o terraço de uso coletivo. Os patamares são generosos e servem como uma extensão da área de trabalho. A outra circulação, mais privativa, conecta as diversas tipologias de apartamentos. As passarelas são bem ventiladas e iluminadas, criando um espaço agradável para o encontro dos moradores.
O edifício possui térreo + 5 pavimentos. O térreo contém dois níveis (+0.00 e +0.50). No nível +0.00 encontram-se o acesso da escada frontal, lojas e áreas técnicas. Tais ambientes possuem o pé direito de 3.20m. O nível +0.50 possui o acesso da escada privativa e 3 apartamentos, seu piso mais elevado que o entorno garante maior privacidade para estas unidades habitacionais. O quinto pavimento abriga um espaço flexível. O terraço-mirante se configura como lugar de encontro da comunidade, abrigo para eventos diversos e espaço de lazer.
Edifício São Miguel Paulista
Os lotes selecionados para implantar o Edifício São Miguel possuem frente para duas vias importantes: a Av. São Miguel que é um importante eixo comercial e de transporte público e a Rua Angelina Lapena, que em contraposição, é uma rua de trânsito local e bastante calma, onde na sua parte mais baixa encontra com a passarela de pedestres que dá acesso ao Jardim Lapena. O lote estreito, comprido e com duas frentes possibilita a criação de uma nova travessia que perpassa o miolo da quadra. Essa passagem organiza o edifício, criando uma narrativa que intercala construção e vegetação, luz e sombra.
Devido ao desnível entre os dois acessos do lote, o edifício se acomoda no terreno, respeitando sempre o gabarito de 10m a partir do perfil natural do terreno. O edifício possui térreo + 3 pavimentos. O térreo possui lojas, áreas de uso comunitário, unidades habitacionais e áreas técnicas. Nos três pavimentos seguintes as ruas elevadas conectam as demais unidades habitacionais e os acessos às áreas de trabalho dos apartamentos.